quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Asas de raízes

 Fazia tempo, Kira queria criar raízes, fincar-se no amor para então sentir a alegria de estar viva.

Quando conheceu Óreo, logo se apaixonou por sua voz doce e seu sorriso verdejante.

Mas assim que o amor se instalou em seu coração, sentiu medo. Quis fugir, voltar para tudo como era antes, pois descobriu que o amor lhe dava vontade de voar, e não de criar raízes.

Óreo, com sua fala de folhagens iluminadas, mostrou-lhe, no entanto, que voar de mãos dadas com quem se ama é o mesmo que plantar árvores que dão frutos com o tempo e com o vento.

— Voa comigo, Kira. O céu também é solo fértil.

Convencida, Kira segurou em sua mão e sentiu o chão desparecer.  

Votos enrugados

 Os três netos olham os avós em sua renovação de votos.

O mais velho acha bobagem. Sessenta e cinco anos de casados? Deus me livre!

A do meio está desiludida. Isso jamais vai acontecer comigo...

A mais nova, no entanto,  adora de ver os rostos dos avós fincados de rugas produzirem algumas mais por causa dos sorrisos. Parecem dois salgueiros antigos, bem curtidos, que ainda gostam de viver. 

Gostava de ser broto daquelas raízes. Como eram lindas aquelas rugas. 

Diálogo noturno

— Mamãe, fadas existem?
— Só nos livros, filha.
— Então fadas não existem?
— Fora dos livros, não.
— E essas aqui deste quadro? Não existem? Tem uma, duas, três... sete! Sete fadas. Elas não existem?
— Só neste quadro.
— Mas se existem na pintura, isso não é existir de algum jeito?
— Ai, criança...
— E por que as árvores estão na água, mãe?
— É o reflexo delas, filha.
— Não foram as fadas que colocaram elas ali?
— Talvez...
— Mas se fadas não existem, quem pensou nelas primeiro?
— E eu sei lá?
— Alguém deve ter pensado nelas primeiro que todo mundo...
— Tá na hora de dormir, filha.
— Conta a história desse quadro pra mim, mãe?
— Ai...
— Por favor...
— Era uma vez sete fadas que moravam em lago. Elas brincavam ali. Ponto final, acabou!
— Nossa, péssima história!
— É que fadas não existem!
— Mas a gente pode fingir.
— Fingir o quê?
— Que elas existem e fazer pedidos!
— E que pedido você ia fazer?
— Que fadas existissem... e que você contasse histórias melhores!
— Ha ha ha, você não existe, garota!
— Ah, então eu sou uma fada! Sabia!
— Boa noite, fada doida!
— Boa noite, fada mãe!


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Carnaval

 Me vesti de colombina
pra encontrar meu pierrô
e me enroscar na serpentina.
Me vesti de colombina
pra deixar de ser menina
e provar todo sabor.
Me vesti de colombina
pra encontrar meu pierrô.

Noite de açoite

Sonhei com você essa noite
na hora do vendaval
e as flores sofriam o açoite. 
Sonhei com você essa noite.
O vento cortava à foice
as veias do temporal.
Sonhei com você essa noite
na hora do vendaval.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Beijo doce

Vira a tarde barulhenta pelo avesso o travesso beija-flor que me visita.

Some buzina de carro, gritaria de feirantes e risadas de crianças.

Alto sobe o piá do pequeno:

Só quer saber do beijo doce que deixei dependurado na janela só pra ele.

Vira a tarde do avesso meu travesso beija-flor.

 

Juliana Borel
belezas de agosto de 2021

Barulho

 Nada se ouvia. Silêncio de fazer zunir os ouvidos.

Dentro dela, no entanto, o barulho fazia concertos.

Espectadora única daquela orquestra, quando o barulho cessou, o silêncio rompeu.

Juliana Borel
inquietações de agosto de 2021

terça-feira, 8 de junho de 2021

Entre conchas e caracóis

     Ainda sinto a areia sob meus pés e o vento fresco batendo no corpo. A pequena mão segurando a minha. Só nós duas, um sol acabado de nascer e o mar à nossa espera. Um encantamento toma conta de mim: só eu e ela, pela primeira vez.  

Mergulhamos. Ela quer ir no fundo, mas tenho receio de não conseguir protegê-la. Tenho medo, digo apertando suas mãos. Tudo bem, ela diz com amor nos olhos, vamos pro raso.

O calor esquenta nossa pele, mas ela me aquece por dentro. Cata conchas com destreza e me entrega. O sal salpica seu cabelo e seu corpo. Olha essa que linda. E essa, enorme! Consegui pegar mais uma. Poxa, a onda levou aquela que eu tinha amado.

Caço conchas também. A gente ri e investiga pedaços de outras coisas que acha no mar. Um caco de vidro, mas esse não corta, tia. Uma alga esquisita. Ih, olha!, um sirizinho.

Mas é pra ela que olho. E acho que o sol vem dos seus olhos... ou de mim. Vem de qualquer lugar iluminado dentro da gente. E somos felicidade.

Em casa, depois do banho, sol e sal na lembrança, ela me pede para penteá-la.

Ali, desembaraçando com cuidado seus fios compridos, separando mecha por mecha, molhando, passando creme e definindo cada cacho, enquanto ela balança as pernas e se admira no espelho, sinto um amor tão grande, tão profundo, tão maior que eu mesma, que tenho vontade de chorar.

Eu não sabia que afeto podia transbordar tão de repente.

Ela sorri pra mim através do reflexo.  Sorrio de volta terminando de fazer uma trança só na franja e prendendo do lado, como uma coroa. Igual à sua, não é, tia? É sim, meu amor.

Ela corre pra brincar com a avó.

E eu sou maior do que era de manhã.

Juliana Borel
afetos de junho de 2021

domingo, 30 de maio de 2021

Porque no silêncio me escrevo

         Um copo de vidro cai. Na rua a britadeira interrompe o canto dos pássaros. Mas nada quebra ou rompe o silêncio da página em branco.

Aqui dentro há o que dizer. As palavras fervilham e se embaraçam umas nas outras, em algazarra e desordem. Estão vindo. Sei que estão. Desde pequena sei quando começam a querer sair. Calada inquietação. Do lado de fora, inspiro e expiro, sem som.

Aquilo que é difícil não rasga a espessura do silêncio sem custo.

Sentada à minha mesa, atravesso a janela com os olhos. Nada vejo, nada ouço. Apenas sinto. Deixo que as palavras se digladiem e espero. Espero que elas se entendam, selem a paz e se organizem. As palavras me escrevem. Uma lágrima ou um sorriso me escapa, antes mesmo da primeira letra ser desenhada. E, assim, começa a dança.  Muitas vezes fora do ritmo e desencontrada, principalmente, quando tento assumir o controle. A palavra me conduz, me leva pelo salão e me faz acertar o passo.

Aquilo que tem custo vale a pena ser escrito. 

Porque me dói e me liberta. Na terapia, quando falo, vou me descobrindo e entendendo naquilo que me escapa dos lábios sem que eu pense. Uma livre-associação que me dissocia das certezas e me desmonta muitas vezes. Na escrita, encontro meus pedaços e vou juntando, montando um quebra-cabeça infinito, no qual sempre surge um vazio novo. E eu vivo nessa ciranda de ditos e não ditos que me compõem de palavras e ausências.

Aquilo que é escrito não nos define eternamente, mas nos eterniza por um segundo.

E me ajuda a ler as raízes que criei, as que tive que cortar e as que estão nascendo agora. Do eterno, que cada segundo escrito me proporcionou, novos infinitos passageiros se criam e eu acompanho essa infinda escala de matizes de quem fui e de quem estou sendo. 

Aquilo que dura um segundo, na escrita não tem fim.

E se tememos a morte, ganhamos o consolo de, com as palavras derramadas no papel, permanecer. Ainda que em silêncio.

Escrevo para que o meu silêncio possa existir.

Juliana Borel
silêncios de maio de 2021